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FAZIAMOS DO NOSSO CORPO UM LABORATÓRIO

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Entrevista EDUARDO CONRADT

Eduardo hoje, careca por obra das bombas. Quando se dopava, ele teve 85% de esterilidade

Eduardo Conradt não costuma passar despercebido nas ruas de São Paulo. É, a um só tempo, esguio e sarado. Seria louro se não tivesse ficado careca. Tem feições teutônicas e um sorriso com direito a covinhas. Bem-nascido, tornou-se um dos mais respeitados personal trainers de São Paulo. Entre seus alunos está a parte discreta da elite financeira paulistana - tão discreta quanto ele. Os primeiros não falam do tamanho de suas contas bancárias e ele, o professor, não fica arrostando o seu passado.

Eduardo é um sobrevivente. Ao longo de quase dez anos submeteu o próprio corpo a extremos de brutalidade. Ele descreve a espiral de destruição que brotou inocentemente numa academia de bairro, quando ele tinha 15 anos, e terminou com seu aprisionamento por alucinações, num corpanzil castigado.

Tudo começa em meados dos anos 80, quando Arnold Schwarzenegger irrompeu no cenário internacional com sua estética proteína pura e sua ideologia força total. No mundo inteiro a garotada ficou ouriçada. Entre eles Edu, então um adolescente que cursava a oitava série e só tinha tamanho: 1,90m. De resto, era mirrado (67 quilos), dependurado em ombros estreitos, e com pouca força nos braços. Começou a fazer exercícios duas vezes por semana. Menos de seis meses depois, já malhava o dobro.

Com um ano e meio de musculação, puxava peso acima do suportável. Sentia dores pelo corpo todo, não dormia sem aplicações de gelo na coluna, mas estava empolgado com o aumento de força. Acabou migrando para uma academia mais pesada, na qual se trocavam receitas de esteróides. Criou coragem e foi falar com o dono: ''Carlos, eu quero ficar forte, quero tomar bomba. Você acha que eu devo ou não devo?'' Edu tinha então pouco mais de 15 anos de idade. Carlos atropelou a dúvida. ''Vamos fazer uma série para você com Decadurabolim e um protetor hepático''.

Como foi a sua primeira vez?
Logo depois de me aplicar a primeira dose olhei no espelho à espera de um milagre. Como não acontece nada, você se sente meio sem graça. Vai para a segunda dose esperando que ela faça o efeito que a primeira não fez. E como a segunda também não é nada daquilo, vem uma terceira, uma quarta, uma quinta. Quando, finalmente, você começa a notar alguma diferença você já está com quatro, cinco, seis seqüências de esteróides, aumentando a dosagem. Aí você não pára mais. Na série inicial eu tomava uma injeção por semana e uns dois comprimidos por dia.

Do ponto de vista físico e psicológico, qual a diferença entre engolir cápsulas de esteróides e se injetar a substância?
A injeção agride, ela te perfura, choca. Lembro que quando eu me aplicava injeções, sempre à frente do espelho, era uma cena chocante, bem semelhante à de um drogado. E é esse choque visual que acentua o efeito psicológico: você está agredindo o teu corpo para que ele fique mais belo. Você acredita que a agressão, assim como a dor, atestam o teu esforço. Na verdade é o contrário, é o comprimido que tem um potencial mais nocivo. Ele tem de passar pelo fígado, e se o cara não tem um fígado forte os efeitos serão mais brutais. A injeção não, ela vai para a corrente sangüínea, o excesso é eliminado e às vezes sequer passa pelo processo hepático.

Por que você olhava no espelho enquanto se injetava?
Para não errar. Há apenas dois pontos possíveis de se aplicar uma injeção no ombro: na lateral e na parte posterior. Na lateral você ainda consegue sozinho, mas de tanto levar picada essa parte do ombro fica ferida, endurecida demais. Então você tem de recorrer à parte posterior do ombro, onde é bem mais difícil acertar sozinho. Havia dias em que meu ombro estava tão macerado que eu não conseguia fazer com que a agulha penetrasse. Parecia de madeira. Eu recorria, então, ao método da alavanca: encostava o êmbolo (o cilindro móvel das seringas) contra a parede, e pressionava a seringa com o peso total do meu corpo para empurrar o líquido para dentro. Hoje conheço o risco da agulha quebrar dentro de mim mas na época eu só queria que aquele líquido entrasse.

E a dor?
Na verdade, se você está obcecado em esculpir o seu corpo você não se incomoda. Pelo contrário. Você procura essa dor. É uma dor prazerosa, não de sacrifício. Você gosta dela por ela ser a dor do resultado.

E porque você não recorria à coxa, às nádegas?
Porque braço é um referencial. ''Quantos centímetros de braço ele tem?'' ''40, 42, 50 cm de braço''. A gente acreditava que aplicando a injeção no braço o efeito seria maior. Além disso, no quadríceps da coxa seria muito mais dolorido por ser um músculo bem mais duro. Tem de ter muita técnica, e eu não tinha.

Essa primeira fase de doping foi boa?
Esplêndida. Antes de completar 17 anos eu já tinha aumentado uns 12, 15 quilos, o que é um assombro. Estava com 80 kg. Foi quando participei do meu primeiro campeonato de força. Concorri com a academia toda e ganhei na categoria absoluta. Passei a ficar fissurado. Queria uma musculatura melhor definida, além de mera força física. Se até então eu tomava um mês de bomba e parava três, passei a me turbinar doze semanas seguidas com intervalos de apenas um mês. O ciclo ia dobrando, triplicando. A gente acreditava que as injeções tinham que ser praticamente diárias para o corpo não ''murchar'' - quem toma bomba tem essa paranóia.

Esse ''murchar'' é real ou imaginário?
É psicológico. Ninguém perde massa muscular em 15 ou 20 dias. Você pode ter um afrouxamento, você pode perder um pouco do tônus mas a quantidade de massa acumulada, não. Só que você acaba se convencendo de que está mais murcho se deixar de tomar bomba um só dia. Sobretudo em época de competição. Parti para o consumo de esteróides importados, que consumiam todo meu dinheiro.

Quanto lhe custavam as bombas importadas?
Três vezes mais do que os dois salários mínimos que eu ganhava trabalhando numa academia. Por serem derivados da testosterona, os esteróides afetaram meu comportamento - tornei-me agressivo, explosivo. Maltratava namoradas e passei a tirar dinheiro da carteira da minha mãe.

Essas mudanças não assustavam sua família?
Sim, mas a capacidade de dissimulação de um viciado é espantosa. Pode estar na cara, no corpo, na pele, mas você continua negando. Várias vezes meus irmãos me confrontaram. ''Você está fazendo besteira?''. Eu respondia que não. Foi nessa época que um colega perguntou se eu já tinha me submetido a algum exame para conhecer o efeito das drogas. Respondi que não e ele me ofereceu um exame gratuito na clínica em que trabalhava. Fui lá. Entre as várias amostras colhidas, fiz um espermograma. Resultado: aos 17 anos eu estava 85% estéril.

Você entrou em pânico?
Não, passei batido. Eu só pensava em me preparar para meu primeiro campeonato de musculação. A essa altura, aos 19 anos, eu já carregava sinais externos mais aparentes do doping: perda de cabelo, oleosidade extrema da pele, agressividade, e acnes pelo corpo todo. Para esse primeiro campeonato eu também me meti em dietas insanas.

Em que consistiam essas dietas?
Minha vida se dividia em dois tempos: a chamada off-season, período em que não havia competições e a alimentação precisava ser riquíssima em calorias. E o pre-contest, ou véspera de competição, quando a obsessão se concentrava em cortar toda e qualquer gordura. O choque no corpo era brutal. Começando pelo café da manhã. Na off-season, eu comia seis claras de ovos batidas com duas maçãs e seis colheres de aveia. Quatro ou cinco bananas amassadas com aveia e mel, e quatro fatias de pão integral. Nenhum leite nem derivado de leite pois a lactose embaça um pouco o corpo, deixa o físico nublado. Em contrapartida, no período pre-contest eu despencava para apenas uma fatia de melão, uma maçã batida com clara de ovo e uma colher de aveia. A mesma gangorra se dava nas demais refeições. De um almoço em que eu ingeria dois quilos de macarrão e batata - é, dois quilos de cada um - e uma dezena de peitos de frango, eu caía para uma única batata cozida e dois filés de peixe. Só.

Você não ficava louco?
Ficava. O anabolizante já aumenta o apetite e de repente eu me via reduzido a uma única batata. Tinha de agüentar. Fiquei muito, muito, muito agressivo. Estava louco, alucinado, com fome, nervoso. Outros medicamentos que eu tomava, como remédios para diabéticos para reduzir o açúcar do meu sangue, me davam alucinações. Eu tinha medos, chorava, tinha depressões.

Quanto tempo durava essa loucura?
De oito a 12 semanas, dependendo do peso que precisava perder. Comida se torna uma obsessão e você pensa nisso 24 horas por dia. Mal você termina uma refeição, já marca no relógio quando será a próxima. Lembro que, para evitar câimbras e perda de potássio, eu só podia comer uma gema das vinte claras de ovos que eu engolia por dia. Ficava curtindo aquela gema lentamente, como se fosse um brigadeiro. Era um momento sublime.

O que mais fazia parte da preparação para um campeonato?
O uso de dilatadores de veias, para aumentar a freqüência cardíaca, fazer o coração bater mais rápido e o sangue passar mais volumoso pelas veias, dilatando-as. Veias aparentes, prontas a explodir, são consideradas atributos no culturismo. Meu dilatador preferido era o Vasculat. Lembro de noites em que eu acordava e levava um susto quando me via no espelho do banheiro. Minha cabeça era uma teia de veias expostas, o peito e a barriga também. Eu achava aquilo maravilhoso.

Algo mais?
Nessa fase você também zera completamente o sal, que é o grande vilão da musculação, pois segura a água. Aliás, nem água você toma - bebe só água destilada comprada em farmácia, para melhor eliminar todo excesso de gordura e de líquido. Competi pesando 90 quilos, 25 kg de músculos a mais do que três anos antes.

Por que só tomar água destilada?
Porque a água de torneira é rica em sais e a meta é chegar o mais próximo possível do zero em potássio, eliminar toda e qualquer água entre a pele e o músculo para que ele pareça colado na pele. Nesse estágio, a urina fica clara e branca. Hoje em dia não se chega mais a esses extremos pois o atleta procura se manter em forma o ano inteiro. As neuroses são menores. Hoje já se ingere um grama de sal (mais ou menos uma colherzinha) por dia.

Havia algum médico orientando você?
Não. É tudo de boca, um dando dicas para o outro. Por exemplo, um colega que trabalhava numa loja de produtos veterinários nos falou de ''um negócio que a gente aplica para engordar cavalos''. Fomos ver e inventamos nossa própria receita. Quantos mililitros se aplica em cavalos por semana? Quatro? Seis? Decidimos que tomaríamos doze. Como vamos tomar doze? Duas picadas de seis ml ou três de quatro? Melhor três de quatro porque em cada seringa só cabem cinco ml. Tudo certo, compra-se um vidro de 50 ml e racha-se as despesas, em grupo. Era assim. Éramos cobaias de nós mesmos. Fazíamos do nosso corpo um laboratório.

E fora da época de competições, você também se monitorava o tempo todo?
Você está sempre ligado, se checando num espelho, numa vitrine. Você sabe que você é diferente. No fundo você se acha um pouco superior. O anabolizante joga a auto-estima lá para cima.

O universo do fisiculturismo atrai gays?
Curiosamente tem poucos. O que existe é uma altíssima dose de narcisismo no mundo da musculação. Um acha o outro perfeito, bonito, um se espelha no outro, mas sem atração. Apenas é uma admiração não escondida. Se o cara é bonito você não faz a menor cerimônia em tocar o seu bíceps, o seu torso, elogiar a musculatura. É claro que quem vê dois grandalhões num restaurante, sozinhos, falando de físico o jantar inteiro, pode achar que se trata de um casal gay. Bobagem. Se os dois amigos fossem mirrados, com ar de intelectual, talvez não chamassem atenção.

Quando você assiste a jogos da NBA ou a provas olímpicas pela TV, dá para identificar atletas possivelmente anabolizados?
Alguns indícios, como oleosidade da pele, agressividade ou determinado tipo de acne não dá para identificar pela TV. Mas o volume de certos grupos musculares, que dificilmente se desenvolvem só com exercícios são sintomáticos. O deltóide, por exemplo, aquele músculo triangular que recobre a articulação do ombro. Quando os ombros ultrapassam uma medida padrão de largura, pode desconfiar. Dos dorsais também - atleta com cinturinha de cigarra e costas que aumentam em forma de V, provavelmente toma bomba.

Além do levantamento de peso, que outra modalidade olímpica exibe indícios de doping?
A ginástica olímpica masculina. No exercício de argolas, quando o atleta se imobiliza no ar mantendo o corpo em forma de L, seus braços expõem todos os feixes de músculos. Normalmente o ser humano tem 10% de taxa de gordura. Quando esses números baixam radicalmente para 5% ou 4% existe uma anomalia.

Michael Jordan tem apenas 3% de taxa de gordura. Mesmo ele sendo da raça negra, cujo índice médio de gordura se situa bem abaixo do da raça branca, lhe parece suspeito?
Não fosse ele um atleta fenomenal, privilegiado, eu desconfiaria. Com 3% de gordura o branco fica estéril. E a mulher, com apenas 5% não consegue engravidar. No caso de Jordan, convém comparar o seu físico no início e final de carreira. Costuma ser um parâmetro confiável. Sem esteróides, consegue-se ganhar uma média de um quilo de massa muscular por ano.

Como termina a sua história?
Quando completei 21 anos. Eu tinha descido aos infernos para competir num campeonato estadual, e peguei só o terceiro lugar. Foi um choque. Três meses depois minha mãe faleceu. Parei de treinar, parei de tomar bombas, perdi o incentivo, perdi o pique de fazer musculação. Cheguei a pensar em acabar com a vida. Mas meu corpo segurou o tranco. Exceto pelo cabelo, que me abandonou para sempre, voltei lentamente a um peso natural. Comecei a me interessar por nutrição esportiva. Até então eu só fazia o que me mandavam, comia coisas que o treinador indicava. Resolvi estudar e me formei em Educação Física e Nutrição. Percorri o Brasil dando palestras. E sabe quem me contratou inicialmente? Carlão, o dono da academia que me iniciou nas drogas. Também ele já era outro: trocara a academia das bombas por uma fábrica de nutrientes naturais.

A garotada e as academias de hoje são diferentes das do seu tempo?
Hoje em dia ficou até mais fácil - com dois telefonemas você compra qualquer doping. Na minha época não se tinha acesso ao hormônio de crescimento. Nem à Internet. O que não muda é a vaidade. A garotada de academia continua se olhando no espelho de dois em dois minutos.

Seu filho Henrique acaba de completar dois anos. Como protegê-lo de si mesmo, se necessário?
Pretendo contar tudo. Ele saberá que se eu tivesse continuado a tomar bola ele não existiria. Hoje eu sei que escapei da morte por acaso, e não suportaria ver os mesmos sinais nele. Sei que vou fazer o que eu puder para protegê-lo. E esse ''o que eu puder'' não tem limites. Envolve agredir, destruir a vida de quem quiser destruir a dele. Mas ele não vai usar anabolizante - não vai precisar.

• No dia da entrevista Eduardo Conradt, 32 anos, ficou sabendo que seria pai pela segunda vez. 13/06/2001 Jornal do Brasil

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